É preciso sangrar até a última palavra
um relato íntimo sobre violência, escuta e delicadeza
Esse é um relato íntimo sobre uma experiência de violência. Por favor, só leia se estiver num momento em que isso não vá te ferir mais do que acolher.
Foi numa sexta-feira, eu estava num bar. Quase não conhecia ninguém ali, mas todos foram incrivelmente acolhedores. Passei a noite conversando, bebendo, até cantando. Esqueci meu abafador de som e nem senti falta — estava tão imersa no momento.
Em algum ponto, já bem bêbada, um homem se aproximou. Começou a conversar e, em seguida, pegou na minha mão e me levou até o banheiro. Não lembro minha reação exata, só sei que acabei indo. Meu corpo moveu-se sem que eu conseguisse reagir. Lembro de pensar: “Por que estou fazendo isso?”, mas continuei. É como se tivesse apagado — não recordo de subir as escadas, de caminhar até lá. A próxima cena nítida é ele tirando a calça e ordenando: “Chupa.” Novamente, não soube como dizer não. Fiz. Não parecia eu ali. Era como se estivesse flutuando acima de tudo, observando aquela cena de fora, como se fosse outra pessoa.
Ele não parece ter gostado muito da minha “performance” e logo falou pra eu parar. Depois veio o “sexo” anal. Não me lembro de tudo, não lembro se ele gozou, ou até se houve a penetração em si, só lembro dele me virando. Depois, ele tentou que eu fizesse “sexo” oral de novo. Eu estava tão bêbada que não consegui me agachar e caí no chão. Foi humilhante.
O resto da festa desapareceu num borrão. O que começou como uma noite mágica, cheia de conexões e gentileza, dissolveu-se naquilo. A próxima memória é a desesperada busca pelo meu celular antes de ir embora. Procurei por todos os cantos, até desistir. Saí sem ele. Uma querida, que havia me ajudado a procurar o celular, pediu um uber pra mim e fui embora.
Acordei com o corpo em protesto: boca amarga, cabeça latejante, uma angústia sufocante. Queria acreditar que foi um pesadelo, mas a realidade pesou. Eu não conseguia comer, me sentia enjoada. Estava fraca, com fome, mas nada parecia apetitoso. Eu sabia que aquilo não era uma simples ressaca, pois os efeitos não eram os mesmos. Eu sentia que não merecia comer, que não merecia me sentir bem.
Me lembro da experiência de violência passada. Eu sentia tanta vergonha e culpa que não contei nada para ninguém por pelo menos um ano. Hoje várias pessoas sabem, mas foi um processo longo. A primeira vez que eu tentei falar pra alguém, foi uma psicóloga que eu não me dava tão bem e não consegui falar. Ela pediu pra eu escrever. Tentei, mas ainda não usei as palavras certas: estupro, violência e ela também não fez esforço para me acolher.
Dessa vez, eu estava confusa, mas segura de mim o suficiente pra acionar amigos. Falei com duas pessoas que foram muito acolhedoras.
A segunda me instruiu a falar com a minha psicóloga e com a dona do bar. Assim o fiz. Ela também me ofereceu companhia para não passar o dia sozinha pensando nisso e para conversar sobre o ocorrido.
Fui para casa dela e fiz a terapia de lá. Foi muito difícil falar, eu não tinha as palavras certas, não entendia meus próprios sentimentos. Mas, dessa vez, ao menos, eu já tinha experiência em relatar violência para essa psicóloga e sabia o posicionamento dela. Eu sabia que não iria ser revitimizada ali. Sabia que seria cuidada. Como ela diz: “eu estou radicalmente do lado das mulheres.” Assim foi, ela me acolheu, me deu o colo que eu tanto precisava.
Essa amiga passou o dia conversando comigo, me distraindo quando eu precisava e falando sobre o assunto quando eu queria. Foi essencial não ser forçada a falar quando eu não queria. Ela me alimentou, fez pastéis. Eu fui cuidada de uma forma que acalenta.
Eu não havia levado roupa para dormir lá, então ela se ofereceu para dormir na minha casa. Viemos.
No dia seguinte, um amigo me instruiu a ir no hospital para me testar contra ISTs e tomar os remédios necessários. Uma outra amiga me acompanhou. Falar sobre o ocorrido foi humilhante. Uma coisa é falar, no seu ritmo, para pessoas de confiança, outra é ter que contar detalhes rapidamente para uma estranha.
A médica disse que, por eu ter tido apagões de memória e só lembrar das coisas em flashes, talvez eu tivesse sido drogada. Infelizmente, já havia se passado mais de 24 horas do ocorrido e elas não poderiam fazer o exame toxicológico. Eu tive que tomar uma dúzia de remédios e três injeções bastante dolorosas. Não foi nada fácil, mas a dor da injeção substituía a dor no peito constante. E isso bastava para que eu não me cortasse, já que era tudo que eu pensava nas últimas 36 horas.
Na segunda, acordei e tive que fingir normalidade. Eu tinha uma reunião com o projeto de pesquisa que faço parte e um atendimento clínico. Não sabia o que iria fazer. Eu só queria morrer.
Lembro que antes disso acontecer, eu já tinha tido pesadelos sobre ser estuprada novamente. E eu sempre veementemente disse: se isso acontecer de novo, pelo menos me mate em seguida. Viver a violência é horrível, mas ter que sobreviver a ela é algo quase impossível.
Eu ainda sentia uma dor que subia pelas costas e me fazia querer chorar. Eu me vi fazendo os mesmos rituais de antes. O banho quente que quase queima, mas não limpa o nojo de mim.
Nesse mesmo dia, eu fui lavar minhas roupas e lembrei da roupa que eu estava usando na sexta. Não consegui colocá-la para lavar. Ela parecia infestada de tudo que eu enojava. Guardei-a numa sacola e coloquei na porta para ser doada. Era uma roupa bonita e que eu adorava, eu me senti adorável quando a coloquei na sexta, mas não faz sentido mantê-la. Ao pegar a roupa, eu vi que havia algo no meu bolso. Uma caixinha de mentos. Me peguei tendo flashbacks dele me dando essas balas.
Eu não lembro do contexto dele ter me dado isso. Será que eu chupei essa balas? Provavelmente. Mas não me lembro. É horrível não saber exatamente o que aconteceu, duvidar da própria memória. Será que eram mesmo balas? Me pergunto.
Eu mandei mensagem pra minha professora, falei que não conseguiria ir na reunião naquele dia e nem na aula no dia seguinte. Pedi desculpas, mas não tinha outro jeito. Também mandei mensagem pro meu paciente, dizendo que “surgiu um imprevisto e eu não poderia atendê-lo.” Ele aceitou prontamente.
Minha amiga, com quem eu passei o dia no sábado, continuava me mandando mensagens para saber notícias minhas. É sempre bom conversar com ela, mas especialmente naquele momento. Ela sabia o que eu estava passando, ao menos em parte, porque também já havia sido estuprada. Obviamente, se eu pudesse escolher, escolheria que ela não tivesse passado por isso. Mas isso não está sob meu controle, então é bom ter alguém que entenda, que divide a dor comigo.
Tive uma sessão extra de terapia neste dia. Foi importante pra mim entender o que fazer quando preciso trabalhar, mesmo me sentindo despedaçada. Entendemos que é possível pra mim desmarcar as sessões – remarcá-las, caso esteja dentro das possibilidades do paciente, ou mesmo pular uma semana. Afinal, sou humana e essa é uma situação terrível. No entanto, também entendemos, juntas, que eu nem sempre vou estar me sentindo plenamente bem e posso ir testando meus limites e o que consigo abstrair e fazer as sessões mesmo assim.
É interessante fazer terapia quando se é, também, psicóloga, pois podemos conversar sobre trabalho de uma forma mais complexa e ouvir sobre o que ela faz nessas situações, mesmo que eu escolha fazer diferente.
Eu li parte desse texto para minha psicóloga e ela chorou. Também conversamos sobre isso. É importante para mim saber que ela sente minha dor comigo, que ela é humana. Sempre me foi estranho relatar a violência é ter pessoas na minha frente fazendo cara de paisagem. Claro, isso não quer dizer que essas outras psicólogas não entendem o tamanho da minha dor, mas elas pareciam, ao menos no meu ponto de vista, prezarem por um relacionamento mais vertical e acreditarem num fazer psicológico mais neutro. Assim, eu me sinto menos sozinha, me sinto mais ouvida e compreendida.
Outra coisa que conversamos foi a minha falta de desejo em ir para faculdade, não pelas aulas em si, mas por ter que fingir que estou bem quando isso é o completo oposto de como me sinto. Mas conversamos sobre como não existem apenas dois extremos. Eu não preciso fingir estar completamente bem, mas também não preciso me expor sobre o ocorrido. Posso dizer que estou passando por um momento difícil, que não tem a ver com as pessoas da sala e que prefiro me resguardar.
Eu passei a ter que me forçar a comer antes da fome ser grande demais, mas eu me sentia sem vontade de cozinhar. Não tinha vontade de fazer nada, na verdade. Depois da sessão, fui na padaria que fica a duas ruas da minha casa e comi uma empada. Eu sei que não posso comer na rua todos os dias, mas decidi me dar esse luxo nesse momento tão delicado.
Sentia que precisava cometer uma loucura, mudar urgentemente. Precisava que desse pra perceber no exterior que meu interior havia mudado. Eu quase me cortei diversas vezes, mas resisti.
Então sai de casa e cortei o cabelo no corte mais ousado e diferente que já tive.
Assim, renasço.
Eu não queria estar passando por tudo isso novamente, mas hoje tenho melhores ferramentas para lidar com tudo. Tenho a coragem de saber que a vida é mais bonita do que somente esse momento.